País mais pobre das Américas, o Haiti foi forçado a assumir, há exatos 200 anos, uma dívida bilionária com a França em troca do reconhecimento de sua independência. A indenização visava gratificar os ex-colonos franceses pela perda de terras e de escravizados e equivalia a mais de dez vezes a arrecadação fiscal haitiana na quadra. O débito foi considerado pago depois de 122 anos, mas até hoje pesa no deficiente desenvolvimento social e econômico.
“Recursos que poderiam ter sido investidos em infraestrutura, saúde e instrução foram direcionados para a economia francesa, ajudando a financiar até mesmo a construção da Torre Eiffel”, afirma Rodrigo Bulamah, perito em Haiti da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e membro do programa Realidades Latino-Americanas.
A revolução haitiana, iniciada em 1791, foi a maior revolta de pessoas escravizadas da história e levou à extinção da escravidão e à independência. Em 1804, o Haiti se tornou a primeira república da América Latina.
A instalação de uma república negra no continente desafiou um mundo em que a escravidão era a norma. As elites brancas temiam revoltas semelhantes, diz Marcos Queiroz, professor de recta no Instituto Brasiliano de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa. Por quase duas décadas, o Haiti sofreu isolamento internacional, bloqueios comerciais e invasões.
Em 17 de abril de 1825, o logo líder haitiano Boyer –pressionado por uma frota de guerra francesa– aceitou remunerar 150 milhões de francos (o equivalente hoje a respeito de US$ 21 bilhões). O valor da indenização abrangia armamentos e propriedades, incluindo os quase 500 milénio habitantes que conquistaram a liberdade. Gerações de haitianos pagaram aos descendentes dos antigos senhores.
A França impôs ainda no entendimento uma redução tarifária de 50% sobre as exportações haitianas e obrigou a antiga colônia a contratar empréstimos em bancos franceses, com juros altos, para remunerar o montante devido. A dívida se tornou dupla: uma com o governo e outra com os bancos.
O valor foi renegociado em 1838. Mesmo assim, em 1898, metade do orçamento governamental haitiano ia para a França.
O percentual chegou a 80% em 1914. Nesse momento, os Estados Unidos assumiram a dívida e ocuparam militarmente o país de 1915 a 1934, com a justificativa de “manter a ordem e facilitar no desenvolvimento” –foi uma das mais longas ocupações militares da história americana. Nesse período, alteraram a Constituição haitiana, permitindo pela primeira vez, desde a revolução, que estrangeiros adquirissem terras no país.
Somente em 1947, posteriormente 122 anos, o Haiti terminou de remunerar a indenização.
Em entrevista à Folha realizada na Citadelle Laferrière, maior fortaleza das Américas erguida no setentrião do país posteriormente a revolução, Emerson Louis, professor da Universidade de Estado do Haiti, disse tratar-se de “uma dívida quádrupla”.
Além do montante devido ao governo francesismo e aos bancos, na visão dele, “há a dívida para com os que trabalharam para remunerar a França”. Boyer, no poder de 1818 a 1843, criou impostos para o pagamento da dívida e reforçou o sistema de plantations —latifúndios monocultores voltados à exportação. Também estabeleceu o trabalho forçado com vigilância militar e coerção sobre os trabalhadores, muitos ex-escravos.
Por término, de entendimento com Louis, a quarta dívida se refere ao prejuízo no desenvolvimento do Haiti, causado pelo meandro das verbas do Estado para a antiga metrópole.
Os líderes políticos tentavam integrar o país à ordem internacional e se distanciaram da maioria haitiana que continuava lutando por liberdade e chegada à terreno, afirma a pesquisadora Bethania Pereira, da Universidade Estadual de Campinas.
Para Marcos Queiroz, a dívida do Haiti estabeleceu um paradigma para as independências latino-americanas. No mesmo ano, em 1825, a independência do Brasil foi reconhecida mediante o pagamento de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas a Portugal — murado de US$ 2 bilhões hoje, ou seja, dez vezes menos que o valor exigido dos haitianos.
A partir do caso haitiano, desenvolveu-se uma política de ressarcimento e reparação aos ex-senhores de escravizados. Sempre que a população negra conquistava a liberdade em qualquer país, impunha-se alguma forma de conversão do capital servo em outras formas de capital— uma vez que na Lei de Terras brasileira (1850), que restringia o chegada à terreno, ou na Lei do Ventre Livre (1871), que na prática obrigava os nascidos livres a trabalhar para os antigos senhores de suas mães dos 8 aos 21 anos.